sábado, 28 de julho de 2012

Sobre Composição, gosto e outras coisas - Parte I

Nas últimas semanas tenho lido, entre outros, dois livros muito interessantes e que, com mania de compositor de sempre por coisa com coisa - com/por - , vi que seria interessante exercitar o relacionamento entre algumas ideias desses dois livros que me pareceram muito próximas. Um deles é o Orientations de Pierre Boulez, que para quem não conhece é uma coletânea de publicações de seus artigos que não foram contemplados nas outras coletâneas como Apontamentos de Aprendiz, Música Hoje, entre outros. O outro é o labiríntico ABC da Literatura de Ezra Pound, que me entristece profundamente em perceber que na atual sociedade este livro distanciasse fortemente de um ABC!!

Bem, acredito que não haverá muita lógica formal neste texto que apresento, mas gostaria de divulgar as ideias geniais desses dois grandes autores, se é que alguém lê este blog (hehe). Grande parte das reflexões são resultado de discussões que tenho que fazer como professor de composição, se é que composição é algo que se ensina.

Começando por Boulez.

No atual mundo da composição tenho visto emergirem inúmeras propostas composicionais um pouco "estranhas" e posso até ser considerado conservador ao apresentar o que se segue.

Com a tão famosa "democratização" da tecnologia temos visto a atividade composicional ser simplificada ou fetishizada, principalmente aquela que usa novas tecnologias, de diversas formas. Não que o desenvolvimento de propostas cada vez mais radicais não devam ser exploradas, mas alguns alertas podem ser apresentados para avaliarmos a situação em que nos encontramos e buscarmos um equilíbrio saudável para nossa prática.

Temos visto por ai uma montanha de softwares que permitem "compor" a partir de trechos musicais prontos e um monte de piro fagias eletro-eletrônicas que são utilizadas como "ferramentas" ou "propostas" composicionais. Grande parte da música eletroacústica ou live-electronics que tem aparecido ultimamente, me parece apresentar um "pequeno" problema de conceito.

A música eletroacústica  parece ter virado um fim e não um meio. Cada vez mais temos compositores eletrocústicos, compositores de live-electronics e não mais compositores que ao se expressar em seu universo, em seu tempo, em sua sociedade, ou quiça à seus pares, compõem musica eletroacústica ao invés de compor. O que tento dizer é que acredito que se deve compor independente do meio em que se expressa e devemos ser capazes de deixar que a escritura que se elabora ocorra no meio que lhe é mais própria, caso contrário teremos um efeito limitador que acho não poder existir na real composição musical.

Não deve-se ser um compositor de música eletroacústica, ou um compositor de live-electronics, mas sim um compositor que se se explora uma forma de expressão que precisará de uma única voz para se materializar isso deve ocorrer naturalmente no processo de criação.

Tenho visto cada vez mais o contrário disso. Cada vez mais compositores decidem: Vou compor um live-electronics, vou compor um "tape solo" (me permitam o termo velho), ou invés de: estou compondo algo e acho que esse algo se materializará como uma música de câmara, se materializará como um "tape solo", ou se materializará como um live-electronics.

Nesse sentido, Boulez apresenta algumas considerações que nos fazem pensar. Em seu texto "L'esthétique e les fétiches" apresenta algumas ideias que bagunçam esse panorâma e que reproduzirei, sem muitas delongas, pois os próprios postulados são auto explicativos:

1 - Muita ciência e pouca sensibilidade
2 - Desejo de ser original a todo custo, levando à artificialidade e ao exagero
3 - Pouco contato com o público devido ao exagero de individualismo
4 - Recusa de aceitar a história e a perspectiva histórica e
5 - Falha em respeitar a ordem natural

Para obter uma visão decente de cada uma dessas ideias, nada melhor que o próprio texto, mas vale a pena ressaltar algumas.

O ocidente tem uma certa mania de evolucionismo desenvolvimentista que sempre pretende considerar o que veio antes como mais velho, desatualizado e caduco o que tem acarretado no panorama que tentei demonstrar acima. Vou reproduzir uma das passagens do texto de Boulez para reflexão:

"Uma melodia Gregoriana é inquestionavelmente mais complexa que uma melodia tonal (...) Nos não podemos falar em 'progresso' da monodia para a polifonia, apenas uma mudança de interesse que enriquece um elemento e empobrece outro, ganho em uma área compensando a perda em outra." (Boulez, P. Orientations. Harvard University Press, 1986. p. 36).

Logicamente, o próprio Boulez vai estender a discussão apontando que cada época tem as suas necessidades e formas de responder à suas perguntas, porém tal excerto nos faz pensar ou ao menos avaliar até que ponto não estamos incorrendo no fetiche de ser original a todo custo, geralmente "jogando a criança fora junto com a água do banho".

Outro ponto a considerar é o primeiro apontado por Boulez: ciência demais. Boulez, em momento algum invalida a ciência e muito menos eu, mas vale ressaltar que é muito estranho o fato de cada vez mais vermos tentativas de justificar a arte pela ciência. Ainda mais no Brasil em que a arte é sempre a prima pobre na academia e na sociedade. Uma necessidade de cientificismo para que a arte não morra de fome é muito comum, porém a arte não deve ter que ser "justificada" nem pela ciência, nem por coisa alguma. A ciência é campo sim de referencia, de exploração e até de inspiração, principalmente para que o compositor entenda melhor o mundo em que vive e elimine anacronismos ingênuos, porém ciência é ciência e arte é arte (com perdão à obviedade). 

Enfim, qual é o real ofício do compositor atualmente? É um pecado capital escrever com alturas definidas? O rito do concerto é tão velho assim? A música feita para o deleite intelectual, reservado e concentrado é tão desnecessária atualmente? Tudo tem que ser performático, interativo e rápido para o nível de atenção efêmera da contemporaneidade?

É evidente que não proponho uma regressão ingênua a modelos estabelecidos ou estereotipados como muito se vê tanto na música popular quanto na música erudita (ressaltando que os termos são péssimos), mas tendo cada vez mais a considerar que composição é um processo de diálogo com a história e para haver diálogo devemos ser menos niilistas com o que nos antecede (com perdão à redundância), ao mesmo tempo que devemos ser mais rigorosos com o que produzimos. Nesse sentido, adoro a definição de Pound sobre literatura:

"Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível" (Pound, E. ABC da literatura, Cultrix, 1977. p. 32).

Porque não pensar na música da mesma forma. Logicamente teríamos que considerar o que é significado em música, porém se qualquer ato perceptivo é na verdade um processo significante, não há tanto erro em transportarmos a definição de Pound para a música.

2 comentários:

  1. Bom, dando pano pra manga...

    Tenho visto recentemente uma grande preocupação com um tipo de escuta que entendo como uma "escuta performática". Escuta esta, não no sentido "abstrato" das nossas experiências musicais, como em salas de concerto ou mesmo em nossas casas, mas ao invés disso, como uma "revalorização" do dito "culto" como uma manifestação social, subsiada ainda por uma proposta de reincorporação do "gesto" - se é que alguma vez ele esteve desincorporado - na experiência musical acadêmica contemporânea.

    Entendo que as tecnologias atuais, por não dispenderem de um tempo ou preparo quase sobre-humano - mais ou menos sobre-humano! - para o "fazer musical" acabam facilitando propostas que se preocupam mais com esta escuta performática do que com uma escuta mais abstrata. Abstrata aqui tb não em um sentido "intelectual" estrutural.

    O que pode ser retirado disso tudo talvez seria uma "relativização da escuta" ou a existência de modos de escutar. Não dá para negar que grande parte das nossas experiências musicais atuais acontecem em tempo diferido (e aqui é onde eu me coloco atualmente!). No entanto, não dá pra deixar de lado também que estas "novas" formas de fazer musica representam um modo compreensão do fenômeno musical.

    Vamo discuti isso aí!

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  2. Opa... valeu por iniciar a discussão!!! Abraços

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