quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Mortuos plango, vivos voco

Neste texto reproduzo uma breve crônica que escrevi para a Revista Pluriversos, uma fantástica iniciativa dos escritores maringaenses que aproveito para ajudar a divulgar.
A revista pode ser lida online no seguinte endereço: Revista Pluriversos - V. 01

Ai vai o texto:

A relação entre texto e música é intrigante a ponto de permitir que outra história da música, quiçá também da poesia - fato ao qual não me arrisco a fazer por ser apenas um música - poderia ser escrita ao focá-la.

Na Grécia antiga, a dimensão poética e a musical se confundiam praticamente em um único conceito, pois não havia poesia sem a musicalidade intrínseca do perfil prosódico e não poderia haver música sem a presença da semântica textual. A proposta de Platão em expulsar o flautista de seu modelo de República assentava-se nessa premissa, já que o flautista, que precisava manter a boca ocupada com o instrumento, não poderia cantar a palavra, eliminando a expressão da Razão de sua prática artística.

Durante a Idade Média, Renascimento e Barroco, a música foi geralmente erigida a partir das relações discursivas oriundas da retórica textual. Diversas convenções foram estabelecidas para reproduzir em música as nuances retóricas do texto, resultando em tabelas complicadíssimas de figuras de retórica que codificavam a relação texto/música. Destacam-se aqui compositores como Orazzio Vecchi, Lucca Marenzio, Girolamo Frescobaldi, ou o magistral Claudio Monteverdi, em especial em seus madrigais Zefiro Torna e Lamento della Ninfa, ambos com poesia de Ottavio Rinuccini.

Com o apogeu do Iluminismo, assistimos ao divórcio do texto e música. Não se aceitavam relacionamentos construídos a partir de simbolismos, portanto que não fossem claros, simples e diretos.

O romantismo musical resgata pouco a pouco os intercruzamentos entre texto e música, mas jamais no mesmo nível de complexidade que o da renascença e do alto barroco.

No século XX, a música abandona paulatinamente o mundo cartesiano da altura definida e do tempo cronométrico, alcançando a continuidade e o fluxo dinâmico e, a poesia e música, voltam a se irmanar em um patamar muito mais íntimo e lascivo. Deixam-se de buscar formas de relacionamento entre campos sígnicos diversos e volta-se a considerar, talvez, como uma retomada do pensamento grego, a palavra enquanto som e o som da palavra. A poesia concreta entra em cena e a música concreta também. Nesse motel suburbano do discurso, a palavra e o som estupram-se mutuamente e extraem um do outro o que têm de melhor. A palavra é vista pelos músicos como matéria sonora e os poetas buscam na matéria sonora as lógicas para a escolha das palavras.

Diversas grandes obras musicais - permitam-me restringir-me ao campo da música para não cometer injustiças - são decorrentes desse período, como a fabulosa Epitaph für Aikishi Kuboyama de Herbert Eimert, Visage de Luciano Berio, Omaggio a Joyce também de Berio: uma das obras na qual mais se abusa da materialidade textual, integralmente realizada a partir do texto inicial do capitulo XI do Ulisses de James Joyce; Blind Man de Barry Truax, realizada a partir da leitura do poema de mesmo nome feita pelo próprio poeta Norbert Ruebsaat.

Por fim, chego à obra que gostaria de ressaltar neste pequeno texto: Mortuos plango, vivos voco de Jonathan Harvey. Essa obra foi composta em 1980 e tem a sua versão mais conhecida a partir de uma reedição de 1999. Selecionei esta obra para fazer minha sensível homenagem a esse compositor, falecido no finalzinho de 2012. A obra é uma das pioneiras e mais importantes a ser realizada em sistemas computacionais com som digital. A despeito da novidade tecnológica da peça, a relação texto/música é levada a um patamar de forte radicalismo e beleza.

A obra baseia-se na inscrição do sino da catedral de Winchester na Inglaterra, igreja onde o filho do compositor cantava. A inscrição diz: Horas avolantes numero, mortuos plango, vivos ad preces voco, que em uma tradução aproximada seria: Eu conto as horas fugazes, eu choro os mortos, eu invoco os vicos à prece.



Nessa obra, o som do sino da igreja e a voz do filho do compositor (portadora da materialidade sonora/textual) se interconectam de uma forma que supera o que era possível de se imaginar na época. O compositor, com a ajuda de aparatos tecnológicos desenvolvidos para a confecção da obra, propõe a transmutação gradativa do texto, enquanto matéria sonora, para som de sino e vice-versa, entremeadas por sinos reais que demarcam as seções da obra-texto, contando o tempo fugaz. Podemos conjecturar que Mortuos plango, vivos voco retorna miticamente ao começo da história narrada neste texto e a supera, criando uma simbiose profunda entre texto e música.

É realmente notória a sensação de corporificação do sujeito desse texto, o sino, a partir do próprio texto. Não há como descrever com palavras o que o compositor realiza nessa obra - você deve realizar uma escuta atenta. É fantástico mergulhar no universo de um texto que se materializa enquanto sino para representar o sujeito oculto em sua própria semântica. Tantas interrelações nos levam a formular a última delas, certamente desagradável, já que escolhi para este texto, a própria obra para vivo, em prece chorar pelo nobre compositor que, morto, nos deixou contanto as fugazes horas do viver.

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